Adaptado da apresentação do Dr. Rodrigo Munhoz. Caso deseje assistir a palestra na íntegra, clique aqui.
Para compreender os avanços da oncologia nos últimos anos é essencial revisitar a história do câncer e seus desdobramentos. Compreender desde os primeiros registros de um processo neoplásico até os tratamentos mais recentes se torna algo necessário para que tenhamos uma perspectiva do que está por vir.
Os primeiros registros
O primeiro relato de um processo neoplásico, correspondente a um osteosarcoma, data de mais de 75 milhões de anos, encontrado em um fóssil de um Centrosaurus apertus, identificado na região de Alberta, no Canadá. Já, o registro mais antigo do ponto de contato com o ser humano, acontece entre 1,6 e 1,8 milhões de anos atrás, descoberto na região do sítio arqueológico de Swartkrans, que hoje corresponde ao território da África do Sul.
Porém, o primeiro relato de um processo neoplásico, retratado como uma doença, só acontece em um período mais recente, entre 1500 e 1600 a.C, mas com estimativas de tempo diferentes, que colocam o ocorrido perto dos anos 3000 a.C. A autoria dos manuscritos descrevendo vários casos de procedimentos médicos, inclusive uma possível neoplasia da mama, é atribuída a Imhotep, e os documentos foram descobertos somente no século XX. Hipócrates, pai da medicina moderna, também teve um papel central na história da oncologia, ao utilizar “onkos” para descrever massas, “karkinos” para descrever tumores (não ulcerados) e “karkinoma” (que significa caranguejo, em grego) para os ulcerados.
No entanto, a descrição minuciosa das características de tumores benignos, malignos e aspectos clínico-patológicos, só acontece com Gabrielle Fallopius, um anatomista e cirurgião italiano. Os saltos temporais são longos até o momento, quando, a partir dos anos 1600 observações perspicazes, talvez as primeiras a propor uma associação entre atividades laborais e exposições ambientais e processos neoplásicos, começam a acontecer.
Bernardino Ramazzini descreveu a escassez de casos de câncer de colo uterino em freiras, quando comparadas a mulheres casadas. John Hill publicou, em 1761, o primeiro artigo que alertava para a associação entre o uso do tabaco e o risco de desenvolvimento de câncer das vias aéreas, que só seria confirmado, em definitivo, na metade do século XX.
Já Percival Pott estabeleceu a relação entre o risco de desenvolvimento de tumores de testículo e a atividade profissional de limpeza de chaminés. Esses estudos, à medida que surgiam, também estimulavam a busca pelo tratamento da doença.
Entre 1700 e 1900, acontecem alguns saltos de conhecimento rumo a estruturação das técnicas cirúrgicas, com destaque para o cirurgião escocês John Hunter (1728 a 1793), que propõem a cirurgia para cura dos tumores, procedimento que se torna viável quando a anestesia é incorporada ao processo, possibilidade desenvolvida pelo dentista William Thomas Green Morton (1819 a 1868), que realizou o primeiro procedimento anestésico em 1846.
A partir do final de 1800 e início dos anos 1900, o cirurgião norte-americano William S. Halsted (1852 a 1922) consegue desenvolver cirurgias estruturadas que mudam o prognóstico e as chances de cura de pacientes, realizando a mastectomia, procedimento que até hoje permanece, com as devidas modificações, como um dos pilares do tratamento oncológico quando falamos em procedimento cirúrgico.
Novas técnicas no passado
As novas técnicas, que incluem radioterapia, quimioterapia, terapia-alvo e, mais recentemente, imunoterapia, ganharam destaque no tratamento do câncer, principalmente, no final do século XIX.
Wilhelm C. Röntgen, físico alemão, ganhador do Nobel de Física, em 1901, é um possível pioneiro do uso de radioterapia no tratamento de tumores, processo que contou com um grande salto a partir das descobertas de Marie Curie, primeira mulher a receber um Prêmio Nobel de Física, em 1903, e também de Química, em 1911.
Avanços mais recentes, a partir da incorporação da imunoterapia, vieram a partir de estudos feitos por George Thomas Beatson (1848-1933) que percebeu a relação entre a função dos ovários e a produção de leite, criando, em 1896, a estratégia de remoção cirúrgica dos ovários (ooforectomia) como maneira de cessar os estímulos que pudessem estar envolvidos na promoção do câncer de mama. Estratégia que também foi levada para o tratamento de câncer de próstata, por Charles Huggins com a remoção cirúrgica dos testículos.
Desse leque de tratamentos, a quimioterapia é o último a aparecer, com seu ponto de partida conectado às pesquisas realizadas por Louis S. Goodman, Albert Gilman Sr. e Gustaf Lindskog, que tinha como foco os efeitos de diferentes agentes químicos, para uso bélico e médico.
Os resultados que estimularam o uso desses elementos como parte do tratamento de câncer, aconteceram quando a equipe usou um derivado de gás mostarda, o químico linfocida sintético, para tratar um paciente. Procedimento que, depois do bom resultado, se desdobrou no desenvolvimento da quimioterapia.
Pouco tempo depois, as pesquisas de Sidney Farber e a concepção da aminopterina e seu efeito antifolato, se traduziram em um avanço muito significativo no tratamento de neoplasias hematológicas e, a partir do final da década de 40, início dos anos 50, a oncologia clínica ganhou uma nova aliada que se somava à prevenção, à cirurgia e à radioterapia.
Nas décadas seguintes, outras drogas foram agregadas ao tratamento quimioterápico, definindo-se como o cuidado padrão e se transformando em sinônimo da oncologia clínica, sobretudo, até meados dos anos 90.
Seleção do tratamento
Nesse período, a seleção do tratamento oncológico era feito com base em uma investigação que partia de achados clínicos, complementada pelos exames físicos, exames de imagem e aspectos clínicos do paciente. Assim, com base no sítio primário e uma análise anatomopatológica, se definia uma histologia e um sítio de origem, e, a partir desses pontos, acontecia a seleção do processo terapêutico a ser seguido. Grande parte dessa classificação e do que se definia como tratamento tinha por base a avaliação por microscopia.
O grande salto
A mudança nesse processo acontece quando se torna possível compreender os substratos moleculares genômicos envolvidos na formação de um câncer. Muito desse processo se deve a descrição do DNA por James Watson e Francis Crick em uma publicação de 1953.
Só a partir desse momento foi possível estruturar as investigações e os experimentos que comprovaram a teoria de que o câncer era um produto essencialmente do genoma ou da expressão do genoma. Alterações no processamento ou no DNA, associadas a modificações metabólicas em um microbioma se traduziriam em expressões anômalas de proteínas que teriam um papel direto no crescimento descontrolado de uma célula.
Com essas informações, passou a ser possível identificar quais os pilares e as etapas essenciais para o desenvolvimento de um câncer. As diferentes aquisições e perdas de capacidades, estão envolvidas na sustentação do metabolismo, na evasão imune, na capacidade de invasividade, de proliferação de vasos, e de metastatização. Tudo isso foi caracterizado com a participação de elementos genômicos e também pela transição de lesões benignas para lesões malignas, na famosa sequência de transição adenoma x carcinoma, de Fearon e Vogelstein, em 1990. Esse processo de caracterização do DNA e dos aspectos genômicos, também permitiu a reclassificação dos tumores em grupos diferentes que transcendem o sítio primário.
Técnicas que se tornaram disponíveis, principalmente a partir dos anos 50 e 60, conseguiram interrogar o genoma de forma muito mais objetiva. A exemplo das técnicas de sequenciamento amplo e de nova geração, que permitiram estabelecer e reclassificar entidades antes agrupadas, como doenças totalmente distintas. Uma subclassificação e expansão drástica no universo e na forma de interpretar um processo neoplásico, não só do ponto de vista anatomopatológico e anatômico, mas agora também do ponto de vista molecular.
A bala mágica do tratamento oncológico e os medicamentos inovadores
Essa subclassificação e a compreensão do substrato genômico trouxe para a oncologia o antigo conceito de “bala mágica”. Anteriormente concebido para a microbiologia, ele foi proposto por Paul Ehrlich e tem como ideia principal a possibilidade de eliminar microorganismos de forma dirigida, sem danificar as demais células saudáveis. Foi a partir da transposição desse conceito para o tratamento oncológico que surgiu a busca por uma terapia personalizada.
A possibilidade de interrogar o genoma mostrou uma infinitude de vias indevidamente ativadas e a capacidade de modulação de receptores com capacidade de modular vias celulares, segundos mensageiros mirando diferentes aberrações do genoma, servindo de base para terapias dirigidas: o alvo da bala mágica. Processo que abriu caminho para que, em 2001 acontecesse a aprovação de uma pequena molécula utilizada por pacientes com alterações moleculares específicas, o imatinibe. Medicamento aprovado, inicialmente, para o tratamento da Leucemia Mielóide Crônica.
Os anticorpos monoclonais também são outra forma de buscar os alvos. Através de imunoglobulinas, produzidas a partir de uma técnica concebida por César Milstein e George Köhler, era possível sintetizar quantidades massivas de anticorpos, de forma dirigida e com alvo pré-determinado, que culminou com a aprovação, em 1997, do rituximabe, primeiro anticorpo monoclonal para tratamento de Linfoma não Hodgkin.
Mais recentemente, houve a expansão desse conceito, a partir da capacidade de conjugação de diferentes moléculas e agentes, conjuntamente com estruturas protéicas capazes de reconhecer alvos específicos, permitindo a criação de rádio-imunoconjugados, de substâncias como imunotoxinas, e inúmeras outras combinações envolvendo a estrutura base da imunoglobulina. Tudo isso foi traduzido em um ganho significativo com a incorporação de terapias-alvo no tratamento de pacientes com Drivers oncogênicos.
O renascimento da imunoterapia
A imunoterapia renasce para o segmento médico a partir do século XIX, e tem Wilhelm Busch e William B. Coley como grandes precursores.
Busch foi responsável por perceber e descrever que pacientes que desenvolviam infecções no pós-operatório tinham menor chance de recidiva de tumores. Coley foi o primeiro a utilizar toxinas (Streptococcus pyogenes e Bacillus prodigiosus), numa tentativa de induzir o fenômeno descrito por Busch, e com alguns sucessos em tumores injetados diretamente com o que ficou conhecido como a toxina de Coley.
Mas, de fato, a imunogenicidade dos tumores só foi assertivamente documentada nos anos 40 e 50 com experimentos de Gross e Foley.
A partir daí, o substrato para descrição da interação imunotumoral, com as diferentes etapas necessárias, se tornou mais claro. Partindo da liberação de antígenos, capazes de serem reconhecidos pelo sistema de defesa a partir de uma célula tumoral, o desencadeamento de uma resposta imune com a mobilização de diferentes componentes celulares, o sistema imune adaptativo, e a migração para o microambiente tumoral com o reconhecimento daquele alvo que serviu de base para o estímulo imune. Processo que se traduz em uma resposta antitumoral a partir de células, até então, definidas como úteis à defesa de vírus e bactérias e que agora, também, têm por função patrulhar ativamente o organismo, conforme estudado por Paul Ehrlich, nas primeiras décadas do século XX.
Um outro grande passo desse universo aconteceu com o reconhecimento de proteínas da sinapse imunológica que tem por função, modular a ativação ou a inibição de diferentes componentes do sistema imune. O passo essencial veio com a descrição do CTLA-4, em 1987, e a descrição, ao longo dos anos 90, da capacidade de indução de uma resposta antitumoral a partir de sua modulação.
Mais recentemente, ao longo dos anos 90, o papel central do PD-1 e a sua interação com o PDL-1 e o PDL-2, a partir dos trabalhos de Tasuku Honjo e James P. Allison, dupla ganhadora do Prêmio Nobel em 2018, permitiu o desenvolvimento de anticorpos monoclonais e outros análogos em desenvolvimento que se consolidaram a partir da prova de conceito dos trabalhos dos dois pesquisadores, ampliando também as formas de tratamento e diagnóstico.
Terapia Celular – Mais um grande salto
A terapia celular é outro grande salto no tratamento oncológico e se consolida como parte da jornada do paciente de diferentes formas.
Dentro dessa seara, vale destacar Steven Rosenberg, um dos grandes personagens do desenvolvimento da terapia celular, particularmente com linfócitos infiltrantes, e mais recentemente, a capacidade de modificar ou sintetizar receptores para linfócitos com alvos pré-definidos, com aprovação em 2017 do primeiro linfócito com receptor CAR para o tratamento de neoplasias hematológicas.
Os diagnósticos hoje e para onde vamos
Todos esses avanços são traduzidos atualmente em uma mudança drástica na seleção do tratamento quando comparamos ao que tínhamos nos anos 40 e 50. Sintomas e achados de imagem, assim como o exame físico e características clínicas, continuam sendo os pilares para a definição do tratamento oncológico. Porém, ao sítio primário e ao exame anatomopatológico se somou a importância das variáveis imunes e moleculares com o peso do diagnóstico, prognóstico, preditivas de resposta e preditivas de toxicidade, pontos que, muitas vezes, se sobrepõem ou são adicionados a variação anatomopatológica possibilitando a construção de uma terapia individualizada, personalizada e que se traduz em ganhos significativos e em aumento progressivo das chances de cura.
Soma-se a isso, a possibilidade e o avanço de técnicas adicionais de monitoramento do tratamento oncológico e também, em um futuro próximo, possivelmente de detecção, a partir de avaliações e técnicas como de DNA circulante, e de células tumorais circulantes, dado que a tecnologia caminhe em direção ao nosso arsenal terapêutico, mais uma vez, tanto para o diagnóstico, acompanhamento e monitoramento terapêutico e em futuro próximo. Impactando não só no tratamento, mas também na capacidade de construção e de desenvolvimento de novas intervenções.
A consolidação desses avanços que vão desde prevenção, estruturação de técnicas cirúrgicas, de radioterapia, incorporação de quimioterapia, a alvo-imunoterapia, se traduziram, principalmente, a partir dos anos 90, em uma redução significativa da mortalidade por câncer, um fenômeno global e que deve ser mantido pelas próximas décadas.

Este resumo foi baseado na palestra do Dr. Rodrigo Munhoz, que pode ser assistida na íntegra aqui.